4 novembro, 2024



A moça da Bicicleta...

    Eu e minha amiga estávamos indo participar de um Congresso de Educação em Reims, França. Sentíamo-nos finas, chiques e intelectualizadas com nossos doutorados, nossa profissão e a conquista da autonomia feminina. Com malas cheias de roupas e experiências, lá fomos nós pegar o trem que nos levaria finalmente ao destino após de 12 horas de voo…

    Depois de um bom café que tomamos na bela estação Gare de Lest, avistamos o trem que chegava e nos surpreendia com suas cores e estampas de plantações de uva e da relva amarela que refletiam a região de Champagne. Estávamos sorridentes e nos sentimos engraçadas, afinal, mesmo não entendendo ou falando quase nada do francês, havíamos conseguido encontrar a “plataforma” correta.  Agora já não éramos pós-doutoranda, ela, e doutoranda, eu. Éramos sábias!

    Finalmente sentamo-nos e o trem partiu rumo ao seu destino. Minha escuta do barulho do trem  remeteu-me à minha infância. Ah! Quantas vezes viajamos para o interior de São Paulo em família para visitarmos os parentes que lá ficaram. Avós, tios, tias, primos... A lembrança emergiu quase que de imediato e por um momento esqueci da minha idade voltando a ser a menina que adorava quando o trem partia da estação.

    A paisagem foi se fazendo presente e com ela vou me encantando com as vilas, as casas pequenas enfeitadas de flores, as ruas organizadas parecendo um cenário. Continuo olhando, louca por apreciar as novas paisagens. 

    Mas, certo incômodo se faz presente, pois o que chama mesmo a atenção do meu olhar é a moça do outro lado, sentada perto da janela. Calma, mansa… 

    Observo-a como quem olha atentamente um quadro. Cabelos curtinhos com um pequeno rabinho atrás e uma bicicleta ao seu lado que descansa tão calmamente como ela. Vestido leve, acima do joelho, com estampas de pequenas flores coloridas… Ela calça um sapato de lona e borracha que se cruzam diante das pernas preguiçosamente esticadas. Ah! Lembro-me de novo: parecem minhas alpargatas que calçava antigamente.

    Com ela, um livro. Ela o lê como quem saboreia um doce gostoso, sem medo de terminar. Penso nos inúmeros livros que tenho por ler, todos iniciados e inacabados como se os consumisse um pouco e precisasse de outro para consumir um pouco mais. 

    Olho para minha linda mala vermelha cintilante. De repente, sinto-me pesada, cheia de roupas e a moça ali tão leve... Penso que seria tão mais simples viver assim, sem tantas roupas a mais, sem tantas coisas a mais e sem tanta leveza a menos… 

    Penso nas caminhadas que não faço – o que tem resultado certo inchaço nos pés, penso nas paisagens que não vejo no meu cotidiano, mesmo passando 2 ou 3 horas por dia dentro de um carro. Penso em como tenho vontade de colocar um simples vestidinho daquele e sair sem pensar se estou com o corpo perfeito.

    O trem segue seu curso com suas paisagens e muitas reflexões vou fazendo naquelas horas...

    É preciso desapego para largar os preconceitos que tenho comigo mesma. Desapego para saborear um livro do começo ao fim pelo simples prazer de ler. Desapego para deixar o cabelo curtinho, preso como o dela, ou solto, rebelde, cacheado... Desapego para deixar o carro confortável e andar a pé ou de bicicleta.

    É preciso humildade para ser eu mesma: leve, serena, mansa, doce, sorridente. Sem desejos de maldade, sem vontade de entrar na briga. Apenas poesia…

​Ao olhar mais uma vez esse quadro de arte que intitulei A moça e a bicicleta, reflito que tudo nele é coerente. A interior do sul da França passando o fundo, a leveza de aparência e de espírito – o mergulho nas profundezas do livro e o caminho dos simples trilhado por aqueles pequenos pés cobertos apenas com a sapatilha de lona bege. Eu preciso dessa coerência.

    Com a mesma tranquilidade, a moça fecha o livro, coloca-o na velha mochila cor de rosa com muitas palavras escritas em francês, pega a sua bicicleta e desembarca na mais minúscula das estações de trem que já vi.

    O trem continua sua viagem. Minha amiga olha para mim e nos entendemos, ou melhor, nos sabemos. Não era um saber de lá de fora, era um saber que nos percorria. 

    Entendemo-nos apenas pelo olhar, afinal anos e anos de estudos na interdisciplinaridade valeram para sermos mais sensíveis para um diálogo entrelaçado e constante com o mundo.

    O trem continua seu curso e nós vamos aprendendo a esperar para aprender a aceitar com simplicidade a fluidez da Vida e todos os encontros que é capaz de nos proporcionar. Ah! A Vida, sempre a Vida e a capacidade que tem de nos surpreender SEMPRE!

    La Vie est belle! (será que é assim que se escreve?)


  Imagem: Anjo da Catedral de Reims - Wikipédia.

 

4 novembro, 2024

Prazer em Viver!

    Um beija-flor adentra à sala onde estou com meu marido. Na janela de vidros altos ele se debate bem na parte mais difícil de alcançar. Seu bico bate freneticamente no vidro transparente para ultrapassá-lo, sempre voando na mesma altura, num tempo que nos pareceu interminável... 

    Tentamos de tudo para tirá-lo de lá, colocamos água com açúcar, vaso com flores no lugar mais alto que alcançamos, acenamos com panos buscando sua atenção para que ele se desviasse do obstinado local de repetição.  

    Em outras tentativas, procuramos ficar em silêncio, esperamos, para que se sentisse seguro e tentasse outros caminhos, torcemos, e confesso, até rezei...  Mas, nada.

    Nos quinze minutos em que o belo beija-flor tentou, calculo eu que foram 72.000 vezes que suas asas bateram (são 80 vezes por segundo) e 18.000 vezes de batimentos cardíacos (são 1200 por minuto). Uma intensa resistência e estado de sofrimento.

    Finalmente, ele foi perdendo forças e foi descendo num voo mais baixo, quando meu marido, subindo em uma escada, arriscando-se também, conseguiu retirá-lo por detrás de uma lâmpada, pegando-o com as mãos.

    Ele se deixou ficar, inerte. Tentamos dar-lhe água colocando-a em seu bico, mas ele não reagiu.

    Observei-o nas mãos de meu marido. E seu corpinho ia, aos poucos, reduzindo a velocidade dos batimentos do seu coração. Fechou os olhos, parecendo morto. 

-Ai, meu Deus! – disse eu, em voz alta.

    O protagonista abriu novamente os olhos para em seguida fechá-lo. 

    Meu marido me ensinou que ele estava recuperando suas energias. E ele abria e fechava os seus olhos cada vez mais demoradamente...  Filmei-o, fotografei-o com assombro e maravilhamento diante daquela joia da natureza. 

    O nosso querido beija-flor finalmente recuperou-se, sentiu-se seguro e voou. 

    Não há como não retratar essa vivência, como que para eternizar esse momento aqui. E não há como segurar as reflexões relacionando esse episódio com o analista e o seu paciente.

    O analista tem diante de si um ser maravilhoso, repleto de talentos multicoloridos. Olha-o, observa-o e o vê diante de muitas possibilidades. Pode dar-lhe um toque, às vezes um lenço, acenar, tentando dizer-lhe que está realmente ali ajudando-o a lembrar-se de algo que pode estar encoberto para que haja compreensão e o desvio da energia psíquica onde o paciente se colocou e que só o machuca. 

    O analista sabe que é na repetição de sua fala, no processo em que é visto e ouvido, em suas inumeráveis sessões, em suas idas e vindas que, de repente, aquele mesmo e angustiante caminho não lhe faz mais sentido. 

    Finalmente, cansado existencialmente, ele vai parando de repetir, parando de bater no vidro transparente que o levaria a morte que só o devoraria... 

    Muitas vezes ainda sobrevoa o lugar, mas começa a perceber que já não é mais o mesmo e nem tem energias para continuar insistindo.   Não há mais sentido... E então, novas forças libidinais retornam direcionando-o para algo que lhe oferte mais prazer, mais saúde, porém, sem tanta angústia e sofrimento. 

    Não se trata de afirmar que não terá  mais alegria e dor. Mas, trata-se de reiniciar o aventurar-se pela vida, conhecendo-se mais e escolhendo fontes psíquicas mais saudáveis de prazer, sabendo que podemos nos transformar continuamente e gerar novos e incríveis movimentos de vida.